29 abril 2015

DIA MUNDIAL DA DANÇA



ESTÚDIO-ESCOLA DE DANÇA CLÁSSICA DE ANNA MASCOLO

O Dia Mundial da Dança seria um pretexto para escrever sobre a transformação do Museu Nacional do Teatro para o Museu Nacional do Teatro e da Dança e, do significado dessa mudança, fundamentada pela formalização da entrega do acervo do Estúdio-Escola de Dança Clássica de Anna Mascolo ao Museu.
Seria porventura uma reflexão oportuna, já que me convocava a escrever sobre a emergência de se criar uma estrutura museológica na área da Dança. Seria afinal uma reflexão bastante focada sobre a luta levada a cabo por Anna Mascolo nos últimos 40 anos.
Informado que estava da possibilidade de se replicar o Estúdio-Escola de Dança Clássica de Anna Mascolo no Museu Nacional do Teatro e da Dança, para memória futura, pensava como seria possível passar-se toda aquela magia de um espaço vivo, em andamento permanente, para um espaço fixo, sem protagonistas que lhe dessem vida. Como se poderiam replicar os afectos, as emoções, o passado, o presente e o futuro. Este pensamento despertou em mim coisas essenciais que traduzem a essência da própria Arte: a Vida!
Ao deambular pelas emoções provocadas pela memória surge-me então uma questão que sempre me intrigou. O Nome do objecto: Estúdio-Escola!? Não foi na Escola de Dança Clássica de Anna Mascolo que estudei? Ou então, não foi o Estúdio de Anna Mascolo que eu frequentei? Seguramente eu estudei e frequentei o Estúdio-Escola! Com esta convicção fui reenviado para a ideia de que a dimensão do Estúdio era para aqueles e aquelas que já dançavam, que já eram bailarinos e bailarinas e que a dimensão da Escola era para aqueles e aquelas que estudavam para ser bailarinos e bailarinas.
Afinal onde é que estes dois conceitos se cruzam, se completam, se afastam? Do ponto de vista semântico o que os liga e os separa. Esta dúvida transportou-me para uma consulta ao Dicionário Petit Robert:
ESTÚDIO: divisão de uma casa; casa só com uma divisão; sala de arte e de ensaios; ateliê de artista…
ESCOLA: estabelecimento de ensino; academia; conservatório, cursos; grupos ou seguidores de pessoas, escritores, artistas correntes; movimentos, seitas…
Olhando hoje para o conceito e comparando-o com as citações do Petit Robert confirmo a sua transversalidade, isto é, o Estúdio de Anna Mascolo era uma sala de ensaios e, simultaneamente, um ateliê de uma artista, enquanto a sua Escola era um estabelecimento de ensino, onde se lecionavam cursos de Dança que seguiam a estética da Dança Clássica.
Juntando-os, Estúdio-Escola, poderíamos dizer que:
- é um ateliê de artista que segue uma corrente, uma estética;
- é uma sala de arte e de ensaios onde se cria e pratica arte;
- é um estabelecimento de ensino onde se ensinam conteúdos artísticos que seguem correntes e estéticas…
Desconstruindo o conceito descobri um espaço de excelência onde a Arte, a Técnica e a Estética andaram sempre de mãos dadas. Em que o Estúdio formava para a Arte e a Escola preparava para a Vida. Assim o nome de Estúdio-Escola tinha sido muito bem escolhido pela nossa Mestre, mostrando, a par de uma oferta formativa clássica, ideias vanguardistas e inovadoras, formando-nos para a Arte e para Vida.
De facto para quem frequentou o Estúdio-Escola de Dança Clássica de Anna Mascolo a questão da aprendizagem de uma técnica ou do aperfeiçoamento de uma arte era, no meu entender, um instrumento que contribuía para formar seres humanos e artistas. Por isso saíam de lá pessoas que seguiam a Dança e não receavam a Vida e outras que seguiam a Vida e amavam a Arte. Umas foram artistas (bailarinos, coreógrafos e pedagogos) e outras foram profissionais do quotidiano (professores, médicos, advogados, empresários, secretários, domésticos, etc.).
A qualidade da formação que se fez ao longo dos 56 anos do Estúdio-Escola de Dança Clássica de Anna Mascolo, e que tem permitido juntar muita gente em todos os eventos surgidos em torno da figura de excepção de Anna Mascolo, permite concluir ser Anna Mascolo uma referência para várias gerações de pessoas que a viram dançar, coreografar e ensinar, mas sobretudo para todas aquelas pessoas que tiveram o privilégio de receber dela a enorme generosidade do seu saber artístico, técnico e humano. Esta, podemos dizer, foi uma trilogia que me acompanhou ao longo da minha vida, assente muito no exemplo da Mestre, da Artista e da Mulher. Obrigado e um beijo de gratidão Anna Mascolo.

Portalegre, 29 de Abril de 2015

Avelino Bento

31 julho 2014

A VIDA É BELA 
de Roberto Benigni

Naturalmente que este não será o único filme da minha vida. Os conceitos e os contextos vão sendo alterados em função de interferências no meu próprio vivido. Por isso mudam. E, essa circunstância, faz-me escolher obras-primas da Arte, da Cultura e da Ciência que me marcam,  marcaram e marcarão indelevelmente para a vida.
A escolha deste filme, A VIDA É BELA, como um dos filmes da minha vida, surge por duas razões. A primeira diz respeito à pertinência deste filme no contexto actual das relações entre nações. O fascismo ou outros totalitarismos ou mesmo grupos radicais aparecem sempre, umas vezes assumidos outras camuflados, umas vezes ainda em registo standard outras ainda sofisticados. Mas quer numas formas quer noutras, todos provocam o caos, a guerra, a destruição e a miséria. Afinal resultado da maldade humana. E isto é verdadeiramente uma grande preocupação minha. Pela minha geração, mas sobretudo pelos mais jovens e pelas crianças. Vemos o que se está a passar na Palestina, na Síria ou mesmo na Ucrânia. Porque nasci no pós-guerra e ainda me apercebi de algumas das sequelas dessa tragédia humana, porque fiz também a guerra colonial, recuso-me hoje a ser de novo observador/protagonista histórico deste flagelo e desta bestialidade humana. Por isso quero, com este filme, fazer um alerta e ajudar na re/ou consciencialização sobre o modo como este mundo está a ser gerido pelos poderosos e por quem os serve.
A outra oportunidade está relacionada com a minha formação artística e como criador. Não sou naturalmente indiferente às questões de ordem estética e artística. Reconheço no filme uma grande produção e realização que nos reenvia para uma estética, direi neo-neo-realista, capaz de mexer sentidos e atitudes para processos individuais e colectivos de desenvolvimento e transformação cultural.
Também não posso ignorar a narrativa brilhante, camuflada por um ludismo (a metáfora da vida bela, como atitude positiva perante as adversidades), e pelo humor que nos leva, divertindo, a pensar objectivamente nos medos e nos receios.
Direi por fim que a figura de Benigni, chapliniana mas também keatoneana, é repleta de um tempo e de um espaço de representação e de trabalho de actor que o eleva a um nível de qualidade superior, singular, mas também universal.



OBS: texto escrito em desacordo com o AO

19 julho 2014

EVOCAR CARLOS QUERIDO

Fez, no dia 7 deste mês de Julho, 24 anos que Carlos Querido nos deixou.
Com ele partiu uma parte da memória-viva de uma geração de portugueses chegados ao Canadá em meados da década de 60 do século XX. Mas o seu legado patrimonial deixado na Televisão Portuguesa de Montréal, de que foi um dos fundadores no outono de 1973, e coordenador até à hora da sua morte, ficou em centenas ou milhares de cassetes-vídeo que durante todos aqueles anos soube construir, partindo daquilo que lhe era muito caro e que entendia ser extensivo à Comunidade Portuguesa: a Cultura de uma forma geral e a Cultura Portuguesa de uma forma particular.
Carlos Querido a par da sua actividade profissional que o levou para o Canadá, lembro que era um excelente desenhador-projectista, começou como voluntário a trabalhar para e com a Comunidade Portuguesa em Fevereiro de 1972 como Animador Cultural. Desde essa altura passou a ser uma referência para a Comunidade, pela sua intervenção, pela sua generosidade, pela sua militância e pela sua cultura.
Porque estou hoje a evocar o nome de Carlos Querido?
Afinal somos amigos (reforço o somos) desde quatro anos antes de ter partido para o Canadá com a Luísa e o Pedro, seu primogénito, ainda bebé. Fomos ao longo dos anos até ao momento em que nos reencontrámos em Montréal, entre 87 e 90, mantendo contactos esporádicos entre nós, sobretudo reatados por eles quando vinham a Portugal. Sabiam onde me encontrar. Tínhamos a Arte e a Cultura como elos de ligação. A minha vida em torno do Teatro e da Dança Clássica nessa altura permitia que este vínculo de amizade não se extinguisse e fosse absolutamente generoso até ao fim da sua vida que eu, infelizmente, acompanhei nos seus últimos meses. As oportunidades criadas por Carlos Querido para eu me integrar na Comunidade Portuguesa, a partir da implementação de momentos como apresentador ou animador de programas na Televisão Portuguesa de boa memória, foram permanentes e permitiram-me durante os dois anos que permaneci em Montréal conhecer a Comunidade, ter apoio “familiar” de amigos e, sobretudo, comungar ideias e projectos com um homem que, do meu ponto de vista, estava à frente da sua época. Era generoso, culto, solidário, humilde, inteligente e dinâmico. Mas era também um homem insatisfeito, com uma enorme vontade de transformar, mudar e inovar. Por vezes não foi suficientemente convincente e, por isso, não teve o(s) apoio(s) que merecia.
Carlos Querido, estivesse ele ainda entre nós, manteria um espírito aberto e universal como era próprio dele. Da mesma forma que se entregou definitivamente ao serviço público, o de servir a Comunidade Portuguesa e nunca se servir dela como pude constatar durante os anos que permaneci junto dele, esse espírito universal seria colocado generosamente ao dispor, com a mesma força e intenção, de uma Comunidade em transformação. De uma Comunidade específica e com identidade cultural própria, a portuguesa, para outra Comunidade onde a diversidade e a pluralidade cultural são factores determinantes para uma existência em comum. Falo, naturalmente, da Comunidade de Língua Portuguesa.

Evocar hoje Carlos Querido, passados estes 24 anos, é apelar a um sentimento de reconhecimento e de homenagem por parte da Comunidade a Carlos Querido e para que esta não se esqueça de todos aqueles que, ao longo da sua História tiveram e continuam a ter uma forma de estar no seu seio, que é de dedicação e de amor pelo próximo, pelos valores e pela cultura comum. Que é hoje, sobretudo, pela Língua Portuguesa.
 

28 março 2014

FESTEJAR O DIA MUNDIAL DO TEATRO NO CONTEXTO DO 40º ANIVERSÁRIO DA REVOLUÇÃO DE ABRIL

 Escrever em 2014 sobre o Dia Mundial do Teatro que se celebra todos anos a 27 de Março é, no ano em que se festeja o 40º aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974, escrever um pouco sobre o Teatro que se fez, viveu e celebrou, a partir desse momento, escrever afinal sobre a mudança cultural que acontecia em Portugal. Mas escrever também  sobre o Teatro que não cumpriu esse “destino”. 
Não poderemos falar sobre o Teatro desse período sem nos referirmos ao Teatro que dois/três anos antes de 25 de Abril de 1974 se fazia em Portugal e que demonstrou ser uma ponte para a mudança cultural e política que viria acontecer. Recordemo-nos dos Bonecreiros, da Comuna, do Grupo de Campolide, da Cornucópia e de outros, que pelo país fizeram soar as trombetas da revolução. Associemos os nomes dos dirigentes que ficarão para a História do Teatro Português: Mário Barradas; Virgílio Martinho, João Mota, Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. 
Apesar de querer escrever, sem nostalgia ou saudosismo, um pouco sobre o exercício teatral desenvolvido pelo Centro Cultural de Évora, actual CENDREV, a partir de 01 de Janeiro de 1975, e sem querer re-escrever a História, não posso deixar de referir também as primeiras Companhias da Descentralização Teatral em Portugal: o Centro Cultural de Évora; a Centelha em Viseu, o Teatro Animação de Setúbal, a Seiva Trupe e outras Companhias que se foram criando à medida que se formavam jovens actores na Escola de Formação e Animação Teatral do CCE. Surgiram assim o Teatro “O Semeador” de Portalegre, o Cena de Braga, depois a Companhia de Teatro de Braga, o Filandorra de Vila Real, e outras que se seguiram ao longo dos anos até à actualidade. 
Este texto não pretende ser mais uma “mensagem” do Dia Mundial do Teatro. Para isso lá estão os actores, encenadores, dramaturgos e cenógrafos do mundo, convidados pelo Instituto Internacional do Teatro, umas vezes com reflexões interessantes e outras um pouco deslocadas da realidade. Mas lembro-me de uma das últimas mensagens, brilhante, feita por alguém com uma forte ligação a Portugal e aos portugueses, e a mim em particular, porque fui seu discípulo, Augusto Boal. 
Na altura em que escrevo este texto, 04 de Março, já conheço o conteúdo da mensagem deste ano de 2014 e quem a redigiu. Brett Bailey, “Neste mundo de poder desigual, onde várias ordens de poder hegemónico nos tentam convencer que uma nação, uma raça, um género, uma preferência sexual, uma religião, uma ideologia, um enquadramento cultural é superior aos outros, é realmente defensável insistir que as artes devem ser libertadas de agendas sociais?” É esta mesma preocupação que partilho e que me leva a escrever para esta efeméride. 
Porque não quero esquecer-me nunca, que foi através do Teatro que cresci como pessoa e como cidadão; e também porque foi através do Teatro que abri horizontes e criei novas necessidades e hábitos culturais. A minha experiência no Teatro foi sempre, e continuará a ser, envolvida por um desejo de necessidades de mudança e de transformação social e cultural. Vejo no fazer teatral um conjunto de processos absolutamente progressistas, no sentido da mudança de atitudes e no sentido da apropriação de conhecimentos e de saberes. Vejo, para além dos fazedores formais do espectáculo teatral, donde emana a proposta de consciencialização para a mudança, outros, os públicos que, através da recepção, constroem os seus percursos de cidadania, transformando, através do lúdico e de uma educação estética e artística, a vida das comunidades. 
Foi isto que, durante algumas décadas, o Teatro promoveu: consciência crítica e cívica. Falo do Teatro tout court. Não discrimino entre o Teatro Profissional, Amador e Universitário. É imperativo resgatarmos de novo o Teatro, e a praxis teatral, da máquina pesada das indústrias culturais e da massificação global, através da implementação local e regional de novas dinâmicas culturais, colocando as pessoas, individual e colectivamente, como protagonistas dessas dinâmicas. Esta é uma das funções mais importantes do Teatro: criar e formar públicos e cidadãos. Foi assim a seguir à Revolução de Abril, e durante muito tempo, onde, para além das campanhas de alfabetização, se iniciou uma descentralização cultural que permitiu que a Cultura, as Artes, e o Teatro em particular, fossem objectos de interesse e de necessidades das comunidades, dos grupos e das populações. 
As causas da Revolução de Abril de 1974 estão já demasiado identificadas historicamente. O que eu gostaria de salientar, sobretudo, foi a oportunidade dada pela Revolução a um processo de transformação cultural e de mudança de mentalidades veiculada por vários instrumentos culturais, sociais, políticos, educativos, artísticos. O Teatro, como Arte Total de que fala Artaud, tem todas estas dimensões e, por isso mesmo foi, do meu ponto de vista, o instrumento privilegiado da Revolução para essa transformação. A acção cultural desenvolvida nesse período permitiu, num curto espaço de tempo, mudanças e aprendizagem súbitas que alteraram os hábitos e as necessidades socioculturais dos portugueses. Foi neste sentido que surgiu o Centro Cultural de Évora em Janeiro de 1975, dirigido por Mário Barradas. Este Encenador, conjuntamente com a sua equipa de colaboradores, actores, e técnicos, a que tive o privilégio de pertencer desde a sua fundação até 1982, fez do Teatro uma pedra basilar de desenvolvimento cultural local e regional, trabalhando textos dramáticos universais na direcção de aprendizagens permanentes por parte das populações, envolvendo-as muitas vezes no processo da criação artística. 
Durante muitos anos cumpriram-se as funções que o Teatro permite: artística, cultural, educativa e social. Durante muitos anos houve um público mais culto, mais crítico e mais participativo. Paradoxalmente na última década e meia, até aos nossos dias, deixámo-nos arrebatar pela alienação cultural, pela massificação cultural desenfreada, pelas indústrias culturais, pelos fenómenos da globalização e fomos paulatinamente perdendo o sentido crítico, a necessidade de intervenção, os hábitos culturais. Afastámo-nos do Teatro, e de outras formas e objectos artísticos, tornando-nos mais pobres de espírito e mais dependentes de produtos que, agressivamente, nos iam sendo impostos por uma sociedade cada vez mais neo-liberal. Depois desta data, 25 de Abril de 1974, muitos Dias Mundiais do Teatro se festejaram aqui e pelo mundo. O que se conquistou em Portugal através do Teatro no campo do desenvolvimento cultural e social, mas também e fundamentalmente no campo artístico, deve ser imediatamente recuperado, lutando-se contra os modelos e interesses que não são os da maioria das populações: a educação estética e artística, a formação de públicos, a criação e fruição artísticas, a socialização comunitária e o associativismo. 
O Teatro e o seu Dia Mundial, para bem da nossa sanidade mental, do nosso crescimento intelectual e da nossa consciência crítica, deverá ser vivido intensamente, de novo, a partir de hoje, 27 de Março de 2014 - Dia Mundial do Teatro.

Texto escrito em desacordo com o AO