13 março 2011

O LUGAR DA FUNÇÃO SOCIAL DO TEATRO NA VIDA DE UM COMBATENTE E EX-COMBATENTE DA GUERRA COLONIAL

Após trinta e sete anos, a guerra colonial está ainda bastante presente no quotidiano português, embora de uma forma invisível. São realidades que não podemos ignorar. Os traumas vividos por estes protagonistas da História de Portugal, os ex-combatentes, manifestam-se dolorosamente pelo resto das suas vidas. Porventura alguns de vocês sabem do que falo. Viveram, tal como eu e muitos milhares de outros, as mesmas situações, o mesmo desespero e a mesma esperança.
Apesar de se terem passado todos estes anos, ainda não exorcizámos esse tempo vivido de falsas ilusões imperiais, fruto de uma educação conduzida nesse sentido. Foi um tempo vivido por medos que se apoderaram de alguns de nós. Foi também o tempo da tomada de consciência do que era e simbolizava a guerra colonial. Naturalmente, não podemos nem devemos esquecê-la. Apenas temos de saber viver com essa recordação. Umas vezes ajudados pela admiração, respeito, amor, amizade, credibilidade e atenção. Outra pela dedicação a causas, a princípios e valores, à arte, à literatura, enfim, à plena integração no mundo e na afectividade. Outras vezes ainda, através de terapias ajustadas à diversidade dos comportamentos individuais, respeitando a liberdade, os interesses e as necessidades de cada um de nós.
O que acabo de dizer é a minha constatação de uma realidade na qual também estou envolvido. Enunciá-la serve apenas para vos dizer qual foi a forma que encontrei para sobreviver. Na Guiné e em Portugal.
De facto, encontrei em duas das abordagens ao teatro, a arte dramática e a expressão dramática, o espaço da sobrevivência. Na Guiné, com a arte dramática, objectivávamos produtos que consubstanciavam o bálsamo da afirmação pessoal e colectiva e nos consciencializavam para um grau de maior importância da vida. Em Portugal, no pós-guerra colonial, com a expressão dramática, os processos vividos em criatividade individual e colectiva orientavam-me na procura permanente de uma identidade que consubstanciasse o renascer de potencialidades, o reencontro dos afectos, a redescoberta dos sentidos, a constatação da diferença, num renascer em continuum.
Permaneci vinte e quatro meses (rigorosamente) na Guiné (Jughudul/Mansoa), entre Janeiro de 1971 e Fevereiro de 1973. Pertencia ao Serviço de Segurança de Transmissões como especialista de criptografia (CHERET). Fui em rendição individual para uma companhia de caçadores que se encontrava já no teatro de operações. Cheguei um mês após a companhia. Não era, portanto, conhecido dos meus camaradas. Afinal, apenas não fizera conjuntamente o percurso da mobilização colectiva.
Ao fim de pouco tempo tinha feito uma radiografia da companhia: dois terços da companhia eram constituídos por trabalhadores rurais do centro e nordeste de Portugal; um terço dos elementos da companhia não sabia ler, apenas assinavam o nome; entre os oficiais e sargentos milicianos só alguns tinham vivências culturais, sobretudo como fruidores passivos de um ou outro objecto artístico ou cultural.
Era claro para mim que, nesta matéria, eu era um privilegiado, porquanto era o único que tinha uma vivência como criador e artista. Tinha formação em dança clássica e começava a estudar teatro. Na primeira actividade fazia parte da Escola de Dança Clássica de Anna Máscolo e da sua Companhia de Bailado. Na segunda actividade, no teatro, tinha já uma experiência de interpretação e estudo realizados no Teatro Universitário de Lisboa. Concluiria a licenciatura em interpretação na Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional depois do meu retorno a Portugal.
A minha integração numa comunidade já construída teria de ser efectuada por via de uma socialização normativa, associada sobretudo às funções que desempenhava enquanto militar. Não me ocorria assumir-me como artista, muito menos como bailarino, qual estigma numa sociedade machista como a castrense. Por isso, a vontade inicial que tinha em propor e fazer actividades artísticas e de animação estavam condicionadas a estes preconceitos.
Para além das obrigações militares que cabiam a cada um de nós nos momentos em que nos confrontávamos com o inimigo (linguagem da altura), quer dizer, com o PAIGC, momentos dramáticos em que uns e outros se defendiam, a vida era uma rotina. Os dias eram passados a comer e dormir, jogar à lerpa ou contar anedotas jocosas, ler romances de cordel ou fotonovelas ou ainda procurar na tabanca a prostituta negra que, por momentos, iludia positivamente a nossa existência.
Este era o quadro que tinha de vencer sabendo, apesar de tudo, que qualquer actividade criativa que propusesse teria sempre alguém lacónico que me chamaria de intelectual ou outras coisas piores. Portanto, nada de dança nem referências a esta actividade. Resolvi avançar com a proposta de se fazer teatro.
Arriscar-me nesta proposta só aconteceu ao fim de alguns meses, talvez quase um ano. Uma atmosfera que fui preparando, declamando poesia com um fundo musical que emergia de uma viola tocada por um camarada. Percebi que a poesia, por si só, era uma linguagem com a qual poucos se identificavam, até pelo aspecto por vezes coloquial desta forma de expressão e comunicação. Tentei progressivamente fazer pré-dramatizações dos poemas que fui escolhendo, onde o corpo e a voz assumiam características para-teatrais. Estas pré-dramatizações tinham já a dimensão de texto dramático ou, se quisermos, de texto espectacular ou ainda de espectáculo.
É a poesia, então, o objecto de pretexto para a interpretação e para a dramatização feitas por alguns daqueles camaradas. A Ode Marítima de Álvaro de Campos e A Noite de Natal de António Gedeão foram dois grandes momentos de encontro afectivo e intelectual de todos aqueles homens carentes de vida, tanto os que interpretaram, como os que assistiram aos espectáculos.
Realizados em tempos e espaços diferentes, estes dois espectáculos apresentados a toda a companhia e a alguns convidados do batalhão a que aquela pertencia, integravam grupos diferentes de indivíduos em cada um deles. O contacto com esta nova linguagem foi, para a maioria deles, absolutamente deslumbrante. Os que viram puderam apreciar nos seus camaradas capacidades até aí desconhecidas. Os que viveram o processo de construção do espectáculo percepcionaram que havia ainda muito por aprender. Nuns e noutros, a afirmação fazia-se sentir, quer através dos comentários paralelos bastante favoráveis, quer através das previsões de outras sessões e projectos que já se iam emitindo.
Estes comportamentos levavam-me a questionar a ideia de criador que eu tinha até essa altura. Afinal, como se «constrói», neste contexto, um criador ou, por outras palavras, como se inicia nestas condições o processo da criação? Freud tinha a criação ou a invenção formal, quando associadas à experiência, ao vivido e à necessidade de expressão, como a enorme necessidade de exteriorizar perante os outros.
Era este aspecto que eu constatava. A vontade daqueles que experimentavam estas actividades traduzia-se pelo desejo rápido de apresentação pública do que tinham construído, não importando o modo como se tinha desenvolvido. Para eles não era importante o processo, apenas o produto, o resultado, aquilo que poderia ser visto. Era exactamente o objecto da afirmação pessoal daquele grupo, isto é, era a representação das suas próprias vidas num percurso catártico, direccionado não para a constatação de facto da situação, mas para a evasão. No fim de contas, era a forma de concentrar energias para uma procura em continuum .
É neste sentido que poderemos falar da função social do teatro. Patrice Pavis refere-nos, por um lado, as funções de apoio e propaganda em favor do poder estabelecido. Por outro lado, também nos relembra as funções da celebração dos valores. Fala-nos ainda, com bastante veemência das funções da subversão, da transgressão, do protesto, da evasão e do divertimento e, também, das funções da animação social.
Do tempo que tivemos para estas práticas, para além das dramatizações de alguns poemas, representámos excertos, naturalmente, do “Médico à força” de Molière e do “Antes de começar” de Almada Negreiros. Apresentámos também duas pantomimas baseadas em histórias da tradição oral. A experiência colectiva, quer do grupo de actores e encenador, quer dos espectadores, enquadra-se no conceito de arte dramática, uma das abordagens à prática teatral. Este conceito preconiza a relação privilegiada entre actores e espectadores, concretizada num espaço-tempo que é a verdade do espectáculo. De facto, era a verdade do espectáculo que mais determinava o interesse pela actividade. Era naquele espaço-tempo que actores e espectadores sublimavam a sua fragilidade física e emocional, através da grandeza conquistada pela ilusão do real.
Será o teatro o lugar privilegiado das aparências? Então como definir, no âmbito desse processus, a relação do social com o individual, que se reformula inteiramente, tanto nos seus traços mais gerais, como nos seus pormenores mais íntimos? Situamos as respostas a estas questões na dimensão do teatro, enquanto arte e expressão artística. Ambas estão associadas à necessidade mais profunda de expandir sentimentos, emoções e, de alguma forma, representar a própria vida.
A arte dramática, tendo como objectivo fundamental a produção artística e concentrando toda a sua energia, jogo e estética num produto final, num espectáculo, na apetência de agradar a um público, cumpriu neste contexto de guerra uma função social importante: permitiu questionar a relação que se estabelecia entre os indivíduos e o seu meio sócio-cultural. Permitiu também questionar o papel que cada um de nós tinha naquele contexto, a pertinência da própria situação, as relações de amizade e solidariedade encontradas aqui em maior profundidade, e também o domínio sobre o medo sempre presente.
Hoje sei, afinal, que o processo é que determinava aquele desempenho, aquela vontade de afirmação. Era lá, naquele espaço-tempo, que se construíam as emoções, se solidificavam as relações, se assimilavam novas aprendizagens e se entendia o mundo porque se compreendia melhor os homens. Não houve muito espaço para a reflexão exterior, mas de certeza que no interior de cada um de nós, a consciencialização daquela situação se tornou mais evidente. Por vezes, já nos questionávamos...
O meu regresso implicou saudades da guerra, mas do ponto de vista das relações humanas. Com este vivido na minha história de vida, aprendi a construir outros valores, a aprofundar o significado da amizade e da solidariedade. Foi uma realidade que assumi logo no momento da separação dos meus camaradas. Mas havia outra realidade: a presença permanente da guerra no meu espírito, mas de uma forma dolorosa, violenta e inesquecível. O meu comportamento traduzia sinais de inquietação e de medos permanentes.
Até entrar na Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional em Outubro de 1973, senti-me vaguear, perdido das emoções, mas consciente da necessidade de reencontrar o rumo certo da minha existência. De facto, ao participar nos ateliês de expressão dramática no âmbito do meu currículo académico, reaprendi a viver, a amar mais a vida e a construir mais a esperança, traduzida até pelos momentos inesquecíveis da Revolução de 25 de Abril de 1974.
Nesta minha reentrada na vida civil, a expressão dramática foi a motivação para reencontrar também os meus sentidos, justamente porque apela, num primeiro instante, ao SER, à capacidade do indivíduo e dos indivíduos (participantes da acção) se mostrarem tal como são, na sua espontaneidade e autenticidade, num processo de relação e interacção.
Ao longo deste últimos trinta e oito anos, a minha actividade tem-se concentrado numa relação profunda com o teatro, nas suas duas formas de abordagem, quer como actor/encenador, quer como professor de expressão dramática e teatro na formação de actores, animadores culturais, professores e educadores de infância. O que posso dizer é que tenho tido uma vida extremamente saudável, espiritual e fisicamente, comparando com a mártir existência de muitos dos meus camaradas com quem me vou juntando ao longo dos anos nos almoços anuais de confraternização. Curiosamente, grande parte das conversas realizadas nesses almoços é sempre sobre os momentos de prazer e convívio que o teatro nos proporcionou.
Em nenhum dos momentos que me envolvi em projectos de arte dramática e de expressão dramática houve preocupações de fazer terapias de grupo e muito menos psicodrama. Foram sempre as variáveis da criação artística e da criatividade e os aspectos da expressão e comunicação do indivíduo que estiveram como prioridades.
Posso finalizar dizendo que, entre 1995 e 2002, período em que desenvolvi a minha tese de doutoramento e, mais recentemente, com o excesso de trabalho académico e intelectual, as actividades de expressão e comunicação através do teatro têm sido, infelizmente, bastante descuradas. O trabalho intelectual e a vida mais sedentária que a investigação e a redacção exigem têm forçado uma sensibilidade, que começa a dar hoje pequenos sinais de uma patologia próxima do stress pos-traumático de guerra.
Esta minha reflexão diz-me que o Teatro como actividade estética, lúdica e artística, inserida em contextos comunitários carentes, promove uma qualidade de vida direccionada para a procura, para o encontro, para o saber, para a distracção, para a socialização e também para a sublimação. Desenvolvida em ambiente de descontracção e sem interferências médicas, ela resolverá muitos problemas do homem porque, ele próprio, se identifica com esta actividade.