02 janeiro 2011

in: A passo de caranguejo de Umberto Eco - (Difel S.A., Algés. 2007)

“…apesar de tudo isto, até o filósofo reconhece que há um inconveniente doloroso na morte. A beleza do crescer, e do amadurecer, consiste em apercebermo-nos de que a vida é uma maravilhosa acumulação de saber. Se não somos tolos ou uns desmemoriados crónicos, à medida que crescemos, aprendemos. É aquilo a que chamamos experiência, graças à qual, em tempos passados, os anciãos eram considerados os mais sábios da tribo, e o seu dever era transmitir os seus conhecimentos aos filhos e netos. É uma sensação maravilhosa vermos que, a cada dia que passa, aprendemos mais, que os nossos erros do passado nos tornaram mais sábios, que a nossa mente, (enquanto o nosso corpo enfraquece) é uma biblioteca que se enriquece dia após dia com um novo volume.
Eu conto-me entre aqueles que não têm saudades da juventude (estou contente por tê-la vivido, mas não gostaria de recomeçar tudo do princípio), porque hoje me sinto mais rico do que antes. Ora, a ideia de que quando eu morrer esta experiência se vai perder, é motivo de sofrimento e temor. Nem me consola pensar que os meus descendentes saberão um dia tanto como eu ou talvez mais. Que desperdício, dezenas de anos gastos a construir uma experiência, e depois deitar tudo fora. É como queimar a Biblioteca de Alexandria, destruir o Louvre, afundar no mar a belíssima, riquíssima e sapientíssima Atlântida.
Encontramos um remédio para esta tristeza no trabalho. Escrevendo, pintando, construindo cidades, por exemplo. Morremos, mas grande parte daquilo que acumulámos não se perderá, deixamos uma mensagem dentro de uma garrafa. Rafael morreu, mas a sua maneira de pintar ainda está à nossa disposição, e é precisamente pelo facto de ele ter vivido que foi possível a Monet ou a Picasso pintarem à sua maneira. Não gostaria que esta consolação assumisse conotações aristocráticas ou racistas, como se o único modo de vencer a morte estivesse somente à disposição dos escritores, dos pensadores, dos artistas… Até a mais humilde das criaturas pode dar o seu melhor através de uma simples transmissão oral, ou com a força do seu próprio exemplo. Todos nós falamos, narramo-nos; às vezes importunamos os outros impondo-lhes a recordação das nossas experiências precisamente para que não se percam.
E, todavia, por muito que eu possa contar ao narrar-me e ao narrar (até escrevendo estas poucas páginas), por muito que escreva ou diga - mesmo que fosse Platão, Montaigne ou Einstein - não irei nunca transmitir a minha experiência vivida - por exemplo, a sensação que experimentei ao ver um rosto amado ou a revelação que tive em frente a um pôr do Sol. Nem sequer o próprio Kant transmitiu plenamente tudo o que compreendeu ao contemplar o céu estrelado.”