01 novembro 2010

Luísa Schmidt no Expresso de 30OUT2010: prosperidade sem crescimento?

“(…)
AS NOVAS HORTAS

E por falar em estupidez, digam lá se era estúpida e retrógrada a ideia das hortas urbanas, há anos defendida por Ribeiro Telles; Paris tem-nas cada vez mais; Berlim e Londres estão repletas delas; tal como muitas cidades norte-americanas, com destaque para Chicago. Por toda a parte – seja por recreio, por economia, por cultura, por ambiente, por necessidade, ou pelo que quiserem, crescem as hortas urbanas. No Porto já há inúmeras e em Lisboa, que sempre as teve, embora meio clandestinas e quase envergonhadas, avançam agora também. O Museu do Traje está a alugar talhões do seu Parque Botânico Monteiro-Mor para hortas que a população das redondezas (de todas as idades e estatutos) tem vindo a procurar cada vez mais. Na alta de Lisboa já existem várias. Idem da Quinta da Granja. Em Chelas, pelo meio do lastimável urbanismo que por lá se fez, a CML vai disponibilizar os 15ha já utilizados pela população e água própria para rega. Telheiras tem prometido um terreno para fazer o mesmo (assim a EPUL o disponibilize)… Falávamos acima da prosperidade sem crescimento. Ora aqui têm. As hortas urbanas são um belo exemplo concreto de como é possível melhorar a qualidade de vida nos aspectos económicos, sociais, recreativos, ambientais e paisagísticos.”
A semana passada em Montargil, onde participei num colóquio sobre Cultura, falando com Aurora Carapinha, velha amiga de Évora, arquitecta paisagista e professora na Universidade desta cidade, hoje Directora Regional da Cultura, referíamo-nos exactamente a esta problemática e à enorme influência que o Professor Ribeiro Telles teve, como professor de arquitectura paisagística, na sua geração. A este propósito lembrei-me de referir um post colocado aqui neste blogue acerca de dois anos e meio, e que, face ao artigo de Luísa Schmidt no Jornal Expresso, tem pertinência em ser recuperado para nova leitura.


"AS HORTAS DE LISBOA
(postado neste blogue em 15 de Junho de 2008)


Uma reportagem na Revista Única do Jornal Expresso de 13 de Junho de 2008 fez-me reavivar memórias de infância. Longe de qualquer nostalgia, esta reportagem reenviou-me para uma prática sociocultural existente na cidade de Lisboa e em toda a zona sub-urbana operária, que se estendia de Sacavém aos Olivais, Cabo Ruivo e Matinha, toda a zona oriental e ribeirinha da cidade de Lisboa, reformulada com a realização da EXPO98, até outras zonas da cidade e seus arrabaldes. Refiro-me às hortas de Lisboa.
Desde o seu desaparecimento, associado em grande parte à emigração, mas também à guerra colonial, até ao momento da reportagem acima referida, essas memórias eram pontualmente convocadas sempre que o Prof. Ribeiro Telles defendia, e defende com muita energia, as hortas da cidade como espaços harmoniosos e de equilíbrio sustentável.
Sendo eu de Sacavém, portas de Lisboa, as minhas memórias afectivas, sensoriais e culturais de infância estão particularmente ligadas ao movimento operário da Fábrica de Loiça de Sacavém, local de passagem de muitas gerações familiares, entre as quais a minha. Precisamente, eram aqueles e outros operários, antigos camponeses, os actores destes espaços, onde a tradição e a modernidade, paradoxalmente, se misturavam num misto de sobrevivência e de festa.
As hortas de Lisboa não surgem com a revolução industrial, vêm de trás. Mas permanecem com o advento da mesma mantendo-se como espaço complementar de sobrevivência.
O curioso desta história é que as minhas lembranças não convocam particularmente o gestus social associado ao acto de fazer a pequena agricultura de subsistência. Esse não era o meu interesse, nem tão pouco a minha preocupação. O que é convocado, ao tempo dessa prática, é antes o espaço de socialização comunitária e a mostra diversificada das culturas regionais que se encontravam num espaço e tempo comum onde se enunciavam, para mim, a matriz e a identidade cultural do povo português.
Não eram só as famílias locais que se aventuravam nessas práticas. Muitas delas, por fazerem parte de gerações de operários, contactavam pela primeira vez a arte de trabalhar a terra aprendendo com outras comunidades oriundas de todo o país.
É neste espaço de socialização que a minha memória mais se afirma e se reencontra com as minhas opções de vida: a ligação à cultura, à arte e à animação cultural.
Foi aqui que ouvi falar de projectos culturais, de colectividades de cultura e recreio; de teatro de amadores, de animadores e ensaiadores.
Foi a partir destes espaços de socialização comunitária que vi emergir as práticas culturais e artísticas do nosso povo. Umas mais regionais e outras já com tendências mais universais.
Creio que foi a partir desta minha vivência social que despertei para aquilo que sou hoje.
Foi a partir da cultura da terra que encontrei o caminho da cultura do espírito. Foi esta afinal que me projectou para o espírito cultural e para as artes.