17 fevereiro 2009

A MILITÂNCIA E A SOLIDARIEDADE NA ANIMAÇÃO SOCIOCULTURAL

Quando penso, do ponto de vista da Animação Sociocultural, na intervenção comunitária e no desenvolvimento local estou, naturalmente, a legitimar a polissemia do conceito e a dar-lhe espaço para a procura, e para o inevitável encontro, de uma diversidade sociocultural. É fácil constatar, em pleno início do século XXI, que essa diversidade resulta de uma forte implementação de identidades culturais e de uma profunda inter-acção axiológica. A coexistência de ambas com a pós-modernidade cultural e global dá lugar, estou convicto, a uma mundividência que congrega os homens e as mulheres como seres humanos em construção permanente.

Essa construção é o corolário de uma emergência capaz de situar no global cada um dos pedacinhos do local, ou dos locais, com os quais nos identificamos, e pelos quais estamos mais ou menos dispostos, ou disponíveis, a criar mudanças dirigidas a um bem colectivo mais universal. É esta a verdade que se quer construir quando se exercita a Animação Sociocultural, mas também é esta a dificuldade quando se pretende afirmar as diferenças e a pluralidade a partir de uma praxis sociocultural tocada ainda por preconceitos e crenças avessas à inovação e à abertura de horizontes.

A matriz em que assenta a Animação Sociocultural distribui-se pelas dimensões social, cultural, artística e educativa, o que permite identificar as modalidades de intervenção. A pertinência de cada uma delas, ou a articulação entre todas, define o conteúdo epistemológico da Animação Sociocultural que conduz ao aprofundamento de uma praxis sociocultural cada vez mais emergente, inovadora e universal.

Estes pressupostos constroem, penso eu, novas estratégias de afirmação individual e colectiva, numa dialéctica capaz de inovar ou transformar definitivamente as relações humanas e de colocar estas num patamar de consciencialização permanente dos valores societários. Essas novas estratégias configuram modelos alternativos, aos já instituídos e gastos, capazes de implementar novas dinâmicas socioculturais que convocam a importância do ser sobre o ter, assim como permitem desenvolver um conceito mais aprofundado de justiça distributiva.

Quer se parta de uma ou da simultaneidade de várias modalidades de intervenção, as prioridades axiológicas da Animação Sociocultural centram-se ao nível da partilha e da solidariedade, fundamentalmente. Dois conceitos que se reaprendem tendo como referência a ancestralidade da Pessoa. Dois conceitos que se desenvolvem tendo como meta a construção de boas práticas comunitárias.

Foi com este enquadramento teórico que surgiu no meu caminho o Projecto da Solidariedade Cidadã. A minha questão de partida, enquanto professor/animador, era a de saber como poderia valorizar esta dimensão específica de cidadania num quadro de formação superior de animadores(as) socioculturais generalistas e numa Unidade Curricular de Projecto. Lembrando sempre que as competências dos(as) animadores(as) devem responder à matriz da Animação Sociocultural na sua globalidade, o que configura a sua formação generalista, não ignorei a questão de princípio dos estatutos do(a) animador(a), a função e o perfil (profissional, voluntário ou benévolo).

Afinal como pode um(a) animador(a) falar do exercício da solidariedade quando se prepara mentalmente para o exercício de uma actividade profissional? Do meu ponto de vista são campos que se cruzam inevitavelmente. A escolha desta formação, e profissão, se nos reenviarmos à própria história da Animação Sociocultural, introduz um valor fundamental: o espírito militante do(a) animador(a) que trabalha para a mudança sociocultural das populações. Logo na essência da sua prática é visível uma carga, não direi ideológica, mas fortemente filosófica, o que pressupõe a existência da ética e da moral.

Se o ponto de partida para o exercício da profissão, diga-se, assalariada, é o da assunção de uma filosofia de mudança sociocultural, o que pressupõe a existência da tal militância no espírito do(a) animador(a), o ponto de chegada é ver resultados nessa mudança sociocultural através do seu trabalho: a importância do bem comum e universal, a consciencialização colectiva do valor do indivíduo, o crescimento cultural, técnico e artístico, a visão universal do mundo e dos homens, a solidariedade como um bem comum, a capacidade de aceitar a diversidade cultural e religiosa.

A assunção do estatuto profissional dá ao/à animador(a) responsabilidades acrescidas: ser militante e solidário(a) e dominar instrumentos que traduzam as competências técnicas e humanas. O(a) animador(a) profissional exercita a solidariedade em dois planos: o pessoal, que permite, que dele(a) emane esse valor reconhecido pelos outros e o profissional que incentiva e facilita a prática da solidariedade entre os outros.

Se nos centrarmos também no(a) animador(a) voluntário(a) ou benévolo(a), continuamos a falar de pessoas normais e solidárias que, rentabilizando as suas competências técnicas e profissionais, estão dispostas a dar um pouco da sua vida e tempo em prole dos outros. Tal como na assunção profissional o objectivo é construir a mudança sociocultural através das técnicas e não só, na assunção voluntária ou benévola este objectivo concretiza-se também por uma entrega mais profunda nos afectos e, naturalmente, pelo exercício de competências.

Esta perspectiva esteve presente num grupo de alunas, futuras animadoras socioculturais. Ainda não eram animadoras profissionais e tão pouco animadoras voluntárias, uma vez que a sua formação estava em curso. O modo como foram convocadas para o Projecto da Solidariedade Cidadã marca claramente o seu espírito solidário mas também militante. Desintegrando-se do Projecto Final da Unidade Curricular, dispuseram-se a frequentar o curso sobre as economias solidárias e a procurarem temas, instituições e pessoas onde pudessem construir em conjunto a prática da solidariedade e da partilha.

Afinal o encontro com a solidariedade é diversificado. A prática da partilha de bens e de serviços em termos solidários é bastante abrangente, podendo situar-se em campos de carências mais urgentes mas também mais singulares. O tema principal que era proposto centrava-se nas economias solidárias e nos mercados solidários. Foi a partir destes modelos de socialização e de solidariedade que o espírito da militância falou mais alto àquelas quinze futuras animadoras socioculturais. O quadro da solidariedade que vislumbraram nas comunidades traduzia-se na necessidade de existir um relacionamento mais profundo com outras culturas existentes no mesmo espaço e tempo comunitários. Era um imperativo o encontro de culturas e a criação de um espaço de partilha e de experiências comuns, onde se fizesse sentir a diversidade cultural e onde cada um encontrasse a pluralidade da sua afirmação e da sua identidade.

A paisagem sociocultural encontrada a partir de um mercado solidário resultou, afinal, da matriz da Animação Sociocultural, isto é, das dimensões social, cultural, artística e educativa. Mas resultou, para além de tudo, da compreensão, dos afectos e do espírito de militância dos(as) animadores(as) socioculturais.

Profissionais ou voluntários, para além de serem militantes das mudanças socioculturais são, sobretudo, pessoas com sentimentos, com valores, enfim, com humanidade que os tornam de alguma forma singulares.