24 novembro 2008

Shakespeare, 400 anos depois

Num artigo com o título “Shakespeare, 400 anos depois”, Esther Mucznik perguntava no Jornal Público de 5ª Feira, 20 de Novembro de 2008, se “É possível encenar esta ou outra peça do mesmo tipo, hoje, depois do Holocausto?”.

A articulista referia-se ao espectáculo encenado por Ricardo Pais e estreado no Teatro Nacional de S. João no Porto, “O Mercador de Veneza” de William Shakespeare, cujo conteúdo gira em torno de uma das personagens principais, o judeu Shylock, “agiota, ganancioso e cruel”.

Apesar de Harold Bloom, especialista em Shakespeare, não ter dúvidas nenhumas em considerar que o texto de Shakespeare é, definitivamente, anti-semita, não nos podemos esquecer, e Esther Mucznik lembrou-nos com toda a prontidão, a paisagem sociológica da peça enquadra-se e traduz todos os estereótipos do anti-judaísmo da época.

Expulsos de Inglaterra em 1290, os judeus só seriam readmitidos no país em 1656. Mesmo ausentes, é fácil de adivinhar que durante todo este tempo predominaria, por parte dos cristãos, uma cultura de rejeição religiosa e cultural sobre os judeus. A peça decorre em 1596, dez anos depois de Shakespeare se ter deslocado definitivamente para Londres. Portanto, é um tempo contemporâneo do autor e da peça, o que nos leva a acreditar que o autor mais não fez do que retratar a sua própria época.

Todavia penso que os patamares da História e da Arte são diferentes. A contemporaneidade de ambas não tem de fazer da segunda cúmplice da primeira. A Arte enuncia também uma visão crítica da História.

Mesmo quando Hitler se apropriou deste texto/espectáculo, tentando fazer dele o mensageiro da inutilidade dos judeus na sociedade, o mais marcante, seguramente, foi a sua crueldade, o mais real, decididamente, foram os factos históricos. O que ficou para a História afinal continua a envergonhar-nos porque traduz, absolutamente, o lado de uma Humanidade que se perde amiúde. A peça é uma obra de Arte, uma jóia da literatura dramática. Ambos estão na História mas por razões diferentes.

A função social do Teatro, quando este se apresenta com textos clássicos ou contemporâneos, é a de ajudar a interpretar as razões históricas daqueles factos narrados. O Teatro ajuda a estabelecer uma dialéctica entre o que está contextualizado e o que se pode e deve descontextualizar. Isso tanto acontece com os textos clássicos, como com os contemporâneos.

Esta questão reenvia-me para a minha experiência de actor em textos clássicos encenados por Mário Barradas no Centro Cultural de Évora, actual CENDREV, na década de 70 e princípios da década de 80 do século passado. Nos textos de Shakespeare, de Goldoni, Marivaux ou Molière, o encenador procurava através do efeito de Distanciação, conceito brechtiano, interpretar as cinco dificuldades no escrever a verdade. Numa profunda análise dramatúrgica dos textos, Bertolt Brecht leva-nos a interrogar a verdade, exactamente com as cinco dificuldades no escrever a verdade. “Quem, nos dias de hoje, quiser lutar contra a mentira e a ignorância e escrever a verdade tem de superar ao menos cinco dificuldades. Deve ter a coragem de escrever a verdade, embora ela se encontre escamoteada em toda a parte; deve ter a inteligência de reconhecê-la, embora ela se mostre permanentemente disfarçada; deve entender da arte de manejá-la como arma; deve ter a capacidade de escolher em que mãos será eficiente; deve ter a astúcia de divulgá-la entre os escolhidos. In: Brecht, B. “Teatro Dialéctico”. Civilização Brasileira, 1967, Rio de Janeiro.

As respostas à verdade são dadas pela consciencialização política dos espectadores. Foi neste sentido que Bertolt Brecht introduziu o conceito DISTANCIAÇÃO. “O efeito de distanciamento transforma a atitude aprovadora do espectador, baseada na identificação, numa atitude crítica. (…)”. “Para Brecht, o distanciamento não é apenas um acto estético, mas, sim, político: o efeito de estranhamento não se prende a uma nova percepção ou a um efeito cómico, mas a uma desalienação ideológica (Verfremdung remete a Entfremdung, alienação social. O distanciamento faz a obra de arte passar do plano do seu procedimento estético ao da responsabilidade ideológica da obra de arte.” In: Pavis, Patrice. “Dicionário de Teatro”. Editora Perspectiva, S. Paulo, 1999.

Esther Mucznik dando eco, no artigo em referência, a uma pergunta ancestral “Isto é bom para nós?”, oferece uma inteligente resposta. “A esta pergunta, feita através dos séculos pelos judeus, maneira indirecta de questionar “até que ponto é mau para nós”, e que certamente alguns colocam face à encenação de uma peça de reputação anti-semita, eu diria que não há melhor antídoto contra o preconceito do que o debate, a reflexão e o conhecimento. (…) A peça agora encenada por Ricardo Pais é simultaneamente um risco e uma oportunidade de debate. Vale a pena correr esse risco, porque o debate é sempre preferível à censura.”

A resposta da articulista é a dialéctica brechtiana centrada no efeito de Distanciação: debate, reflexão e conhecimento.