15 junho 2008

AS HORTAS DE LISBOA

Uma reportagem na Revista Única do Jornal Expresso de 13 de Junho de 2008 fez-me reavivar memórias de infância. Longe de qualquer nostalgia, esta reportagem reenviou-me para uma prática sociocultural existente na cidade de Lisboa e em toda a zona sub-urbana operária, que se estendia de Sacavém aos Olivais, Cabo Ruivo e Matinha, toda a zona oriental e ribeirinha da cidade de Lisboa, reformulada com a realização da EXPO98, até outras zonas da cidade e seus arrabaldes. Refiro-me às hortas de Lisboa.
Desde o seu desaparecimento, associado em grande parte à emigração, mas também à guerra colonial, até ao momento da reportagem acima referida, essas memórias eram pontualmente convocadas sempre que o Prof. Ribeiro Telles defendia, e defende com muita energia, as hortas da cidade como espaços harmoniosos e de equilíbrio sustentável.

Sendo eu de Sacavém, portas de Lisboa, as minhas memórias afectivas, sensoriais e culturais de infância estão particularmente ligadas ao movimento operário da Fábrica de Loiça de Sacavém, local de passagem de muitas gerações familiares, entre as quais a minha. Precisamente, eram aqueles e outros operários, antigos camponeses, os actores destes espaços, onde a tradição e a modernidade, paradoxalmente, se misturavam num misto de sobrevivência e de festa.

As hortas de Lisboa não surgem com a revolução industrial, vêm de trás. Mas permanecem com o advento da mesma mantendo-se como espaço complementar de sobrevivência.

O curioso desta história é que as minhas lembranças não convocam particularmente o gestus social associado ao acto de fazer a pequena agricultura de subsistência. Esse não era o meu interesse, nem tão pouco a minha preocupação. O que é convocado, ao tempo dessa prática, é antes o espaço de socialização comunitária e a mostra diversificada das culturas regionais que se encontravam num espaço e tempo comum onde se enunciavam, para mim, a matriz e a identidade cultural do povo português.

Não eram só as famílias locais que se aventuravam nessas práticas. Muitas delas, por fazerem parte de gerações de operários, contactavam pela primeira vez a arte de trabalhar a terra aprendendo com outras comunidades oriundas de todo o país.

É neste espaço de socialização que a minha memória mais se afirma e se reencontra com as minhas opções de vida: a ligação à cultura, à arte e à animação cultural.

Foi aqui que ouvi falar de projectos culturais, de colectividades de cultura e recreio; de teatro de amadores, de animadores e ensaiadores.
Foi a partir destes espaços de socialização comunitária que vi emergir as práticas culturais e artísticas do nosso povo. Umas mais regionais e outras já com tendências mais universais.
Creio que foi a partir desta minha vivência social que despertei para aquilo que sou hoje.
Foi a partir da cultura da terra que encontrei o caminho da cultura do espírito. Foi esta afinal que me projectou para o espírito cultural e para as artes.