13 janeiro 2008

O PÁSSARO DE FOGO

Era uma piriquita muito amarela de penas. De fogo, tinha a força que só os grandes de cada espécie merece ter. Era uma piriquita já muito, mas muito velha, que não mostrava ser apenas alguns a merecer a imortalidade.
Desde muito nova naquela casa, com muita gente em redor, ela saltava, cantava, gorjeava e seduzia, deixando os seus donos embevecidos e ternamente orgulhosos daquela versátil cantoria.
Um dia pensaram os donos: “e se déssemos um companheiro à Tona?” - era assim que a chamavam por andar sempre nas alturas ou, mais concretamente, voava e saltava sempre pelo espaço e plano superior da gaiola. Jamais se passeava pelo chão da mesma, pelo contrário, só saltitava de tronco em tronco e, de preferência, sobre aqueles colocados nos pontos mais altos da sua habitação. Queria, porventura, ter uma visão do mundo mais abrangente. Desse companheiro há, para aqueles donos, poucas memórias, já que pouco tempo depois apareceu morto naquele chão que a Tona se recusava a pisar. Nunca se soube a causa desse infortúnio.
A vida continuava para aquele espantoso pássaro no seio familiar que toda a atenção lhe dava. Era ver todos, especialmente o pai da família, em assobios histriónicos numa animada conversa com a Tona ou, muitas vezes, em autêntica competição sonora e melódica.
Poder-se-á dizer, mas afinal essa é a vida normal de um pássaro que está numa gaiola. Está lá porque os donos gostam de o ver e de o ouvir. Talvez com esta velha piriquita houvesse mais qualquer coisa. Ela julgaria ter a dimensão de uma guardian de templo. Talvez para ela, aquele lar e aquela família fizessem parte de um templo que merecia ser guardado. Talvez para ela, todos aqueles que lhe davam atenção, eram deuses de um Olimpo que ela própria imaginou e do qual também fazia parte.
Os donos insistiam na ideia de que a solidão de Tona, apesar de esta se expressar muito alegremente, deveria ser preenchida mais uma vez. Outro companheiro foi fazer parte do quotidiano daquele singular pássaro. Mais uma vez, também este caiu morto. Mas agora havia vestígios de alguma violência. A Tona, interpretaram os donos, queria estar só e exclusivamente para eles. Queria para ela toda a atenção deles, retribuindo assim também a sua plena atenção para com os seus donos. Provavelmente, e de uma forma fria, eliminou, com fortes bicadas, o seu companheiro.
Mas isto é o reino dos animais e, como no mundo dos homens, também por vezes o mais forte é o mais injusto. Por opção, a piriquita Tona passou a viver definitivamente só, ou do seu ponto de vista, talvez não. Afinal vivia com aqueles humanos que lhe davam toda a atenção do mundo, daquele seu mundo que, sendo pequeno, era enorme.
Passaram-se muitos e muitos anos e a piriquita foi envelhecendo, ao mesmo tempo que o seu corpo se ia deformando. Sem as forças e agilidade de outros tempos, Tona continuava a cantar, embora sem o mesmo brio, para continuar a ter a atenção dos seus donos. Nas suas deslocações, bastante mais limitadas, que lhe permitiam chegar à comida e à água, a velha piriquita fazia autênticos números de circo, mas em grande sofrimento. Era uma grande lutadora. Um dia percebeu haver alma nova, que não ela, naquela casa. De facto tinha nascido um menino no seio daquela família e as atenções passaram a ser-lhe dirigidas. Triste, deixou-se envelhecer ainda mais, esquecendo-se que o seu dono, que a provocava para o canto, também ele envelhecia.
Foi esta solidariedade no envelhecimento de ambos, de todos afinal, que lhe mostrou que ela também é da família e, que se morresse, todos os seus donos sofreriam com essa perda.
Assim a história ainda continua e perdurará para além das memórias. Todos estão vivos esperando serenamente o seu fim, que será, seguramente, diferente no tempo e no espaço, para cada um dos que constituem aquela família a que a Tona afinal também pertence.
Para o meu neto Manuel - 10 de Fevereiro de 2007

PS: A Tona, sem a vivacidade e a cantoria que a tornavam única, acaba de partir, voando ainda mais alto, na direcção do horizonte onde todos os seres têm um lugar, que não sendo eterno, é profundo: a saudade.