16 julho 2007

SPTG

Tenho vindo, esporadicamente, a fazer leituras sobre guerras, escritas umas a partir da realidade transformando-se em ficção, outras a partir da ficção tentando mostrar o real. A guerra, qualquer guerra que seja, vista nestas duas dimensões, é sempre de uma crueldade que configura o caos e a barbárie. Independentemente de se saber a razão da sua origem, o que marca, é o que essa guerra produz na humanidade que a vive e que sentimentos são deixados na que observa.

As guerras sempre existiram, desde os primórdios da Humanidade, evoluindo esteticamente (evolução?) e tornando-se cada vez mais sofisticadas e eficazes. A única coisa que não mudou desde os primórdios e que dá origem às guerras, é justamente o desentendimento e o conflito permanente entre o ser humano.

Acabo de ler Arturo Pérez-Reveste que dá um retrato implacável de uma guerra, de várias guerras em “O Pintor de Batalhas”. Não é só a visão do jornalista de guerra, é também a visão do humanista, do homem que vive a preocupação do mundo. A narrativa da obra assenta na percepção trágica que ele tem da guerra, nos seus aspectos mais cruéis e demonstra-o através de uma pintura em mural, que vai desenvolvendo à medida da sua consciência, da sua vivência e das memórias da sua interacção com protagonistas da própria guerra.

Tudo isto vem a propósito do chamado “stress pós-traumático de guerra - (SPTG)” de que muito se fala actualmente em Portugal, mas também no resto do mundo, onde estes acontecimentos tiveram ou vão tendo lugar. Curiosamente sempre na perspectiva de quem participa ou participou e nunca, ou quase nunca, do ponto de vista de quem viveu a própria guerra, mesmo não estando em nenhum dos lados dos beligerantes.

Como antigo combatente, na Guiné entre 1971 e 1973, consciente de muitos fantasmas ainda existentes no meu espírito e nos meus sentidos, não tenho dúvida que, para milhares de ex-camaradas meus, ainda não apareceram as oportunidades de realizarem as suas catarses e melhorarem a sua qualidade de vida. Abrindo um parêntesis, nem todos tiveram, infelizmente, a possibilidade de fazer essa catarses através de uma educação e formação artística. Com efeito, a dimensão terapêutica da arte é tão profunda e eficaz nestes casos que, muitas vezes, permite revelar uma dimensão enorme na criação artística de muitas dessas pessoas, como é o caso, entre muitos, do escritor acima mencionado. Fechando este parêntesis, não tendo essa possibilidade, a vida da grande maioria desses ex-combatentes tem surgido com um índice muito baixo de qualidade, transformando-se num percurso difícil e cheio de obstáculos que os impede de chegar à felicidade.

Mas também não tenho dúvidas de que para muitas famílias desses ex-combatentes, a ascendente, mas sobretudo a descendente, as suas vidas não têm navegado num mar de rosas. Acabam por sofrer do mesmo modo as consequências da guerra que, indirectamente, viveram ou continuam a viver.

Sempre que vou a um almoço de convívio entre ex-camaradas, desses que se realizam anualmente um pouco por todo o país, organizados por batalhões e companhias e que, inconscientemente, acabam por ser, um pouco, um espaço de catarses, apercebo-me da expressão que emana daqueles semblantes, olhares cansados, tristes, às vezes alcoolizados e de baixa estima, moral e pessoal, olhares outrora mais atentos aos perigos e à sua própria sobrevivência.

Do mesmo modo, não deixo de reparar nos olhos e nos comportamentos daqueles e daquelas que constituem as suas famílias e que vêm militando no quotidiano afectivo desses ex-combatentes: também a tristeza, a doença, a pobreza e a infelicidade. Quando não encaro com alguns desses ex-combatentes sós, porventura já abandonados há muito por aqueles que não quiseram ou não foram capazes de, em conjunto, partilhar um tempo e um espaço comum de sofrimento. Aí, ficam abandonados à solidão do seu próprio sofrimento. Quantos casos de violência doméstica, de famílias destroçadas, de vínculos afectivos cortados e de futuros que morrem no amanhã.

Todos temos responsabilidades morais por estes acontecimentos e, portanto, temos uma quota-parte de culpas neste desamor entre os homens. Afinal, as guerras vitimizam não só os protagonistas. Também tornam mais pobre e doente a Humanidade.