28 março 2014

FESTEJAR O DIA MUNDIAL DO TEATRO NO CONTEXTO DO 40º ANIVERSÁRIO DA REVOLUÇÃO DE ABRIL

 Escrever em 2014 sobre o Dia Mundial do Teatro que se celebra todos anos a 27 de Março é, no ano em que se festeja o 40º aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974, escrever um pouco sobre o Teatro que se fez, viveu e celebrou, a partir desse momento, escrever afinal sobre a mudança cultural que acontecia em Portugal. Mas escrever também  sobre o Teatro que não cumpriu esse “destino”. 
Não poderemos falar sobre o Teatro desse período sem nos referirmos ao Teatro que dois/três anos antes de 25 de Abril de 1974 se fazia em Portugal e que demonstrou ser uma ponte para a mudança cultural e política que viria acontecer. Recordemo-nos dos Bonecreiros, da Comuna, do Grupo de Campolide, da Cornucópia e de outros, que pelo país fizeram soar as trombetas da revolução. Associemos os nomes dos dirigentes que ficarão para a História do Teatro Português: Mário Barradas; Virgílio Martinho, João Mota, Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. 
Apesar de querer escrever, sem nostalgia ou saudosismo, um pouco sobre o exercício teatral desenvolvido pelo Centro Cultural de Évora, actual CENDREV, a partir de 01 de Janeiro de 1975, e sem querer re-escrever a História, não posso deixar de referir também as primeiras Companhias da Descentralização Teatral em Portugal: o Centro Cultural de Évora; a Centelha em Viseu, o Teatro Animação de Setúbal, a Seiva Trupe e outras Companhias que se foram criando à medida que se formavam jovens actores na Escola de Formação e Animação Teatral do CCE. Surgiram assim o Teatro “O Semeador” de Portalegre, o Cena de Braga, depois a Companhia de Teatro de Braga, o Filandorra de Vila Real, e outras que se seguiram ao longo dos anos até à actualidade. 
Este texto não pretende ser mais uma “mensagem” do Dia Mundial do Teatro. Para isso lá estão os actores, encenadores, dramaturgos e cenógrafos do mundo, convidados pelo Instituto Internacional do Teatro, umas vezes com reflexões interessantes e outras um pouco deslocadas da realidade. Mas lembro-me de uma das últimas mensagens, brilhante, feita por alguém com uma forte ligação a Portugal e aos portugueses, e a mim em particular, porque fui seu discípulo, Augusto Boal. 
Na altura em que escrevo este texto, 04 de Março, já conheço o conteúdo da mensagem deste ano de 2014 e quem a redigiu. Brett Bailey, “Neste mundo de poder desigual, onde várias ordens de poder hegemónico nos tentam convencer que uma nação, uma raça, um género, uma preferência sexual, uma religião, uma ideologia, um enquadramento cultural é superior aos outros, é realmente defensável insistir que as artes devem ser libertadas de agendas sociais?” É esta mesma preocupação que partilho e que me leva a escrever para esta efeméride. 
Porque não quero esquecer-me nunca, que foi através do Teatro que cresci como pessoa e como cidadão; e também porque foi através do Teatro que abri horizontes e criei novas necessidades e hábitos culturais. A minha experiência no Teatro foi sempre, e continuará a ser, envolvida por um desejo de necessidades de mudança e de transformação social e cultural. Vejo no fazer teatral um conjunto de processos absolutamente progressistas, no sentido da mudança de atitudes e no sentido da apropriação de conhecimentos e de saberes. Vejo, para além dos fazedores formais do espectáculo teatral, donde emana a proposta de consciencialização para a mudança, outros, os públicos que, através da recepção, constroem os seus percursos de cidadania, transformando, através do lúdico e de uma educação estética e artística, a vida das comunidades. 
Foi isto que, durante algumas décadas, o Teatro promoveu: consciência crítica e cívica. Falo do Teatro tout court. Não discrimino entre o Teatro Profissional, Amador e Universitário. É imperativo resgatarmos de novo o Teatro, e a praxis teatral, da máquina pesada das indústrias culturais e da massificação global, através da implementação local e regional de novas dinâmicas culturais, colocando as pessoas, individual e colectivamente, como protagonistas dessas dinâmicas. Esta é uma das funções mais importantes do Teatro: criar e formar públicos e cidadãos. Foi assim a seguir à Revolução de Abril, e durante muito tempo, onde, para além das campanhas de alfabetização, se iniciou uma descentralização cultural que permitiu que a Cultura, as Artes, e o Teatro em particular, fossem objectos de interesse e de necessidades das comunidades, dos grupos e das populações. 
As causas da Revolução de Abril de 1974 estão já demasiado identificadas historicamente. O que eu gostaria de salientar, sobretudo, foi a oportunidade dada pela Revolução a um processo de transformação cultural e de mudança de mentalidades veiculada por vários instrumentos culturais, sociais, políticos, educativos, artísticos. O Teatro, como Arte Total de que fala Artaud, tem todas estas dimensões e, por isso mesmo foi, do meu ponto de vista, o instrumento privilegiado da Revolução para essa transformação. A acção cultural desenvolvida nesse período permitiu, num curto espaço de tempo, mudanças e aprendizagem súbitas que alteraram os hábitos e as necessidades socioculturais dos portugueses. Foi neste sentido que surgiu o Centro Cultural de Évora em Janeiro de 1975, dirigido por Mário Barradas. Este Encenador, conjuntamente com a sua equipa de colaboradores, actores, e técnicos, a que tive o privilégio de pertencer desde a sua fundação até 1982, fez do Teatro uma pedra basilar de desenvolvimento cultural local e regional, trabalhando textos dramáticos universais na direcção de aprendizagens permanentes por parte das populações, envolvendo-as muitas vezes no processo da criação artística. 
Durante muitos anos cumpriram-se as funções que o Teatro permite: artística, cultural, educativa e social. Durante muitos anos houve um público mais culto, mais crítico e mais participativo. Paradoxalmente na última década e meia, até aos nossos dias, deixámo-nos arrebatar pela alienação cultural, pela massificação cultural desenfreada, pelas indústrias culturais, pelos fenómenos da globalização e fomos paulatinamente perdendo o sentido crítico, a necessidade de intervenção, os hábitos culturais. Afastámo-nos do Teatro, e de outras formas e objectos artísticos, tornando-nos mais pobres de espírito e mais dependentes de produtos que, agressivamente, nos iam sendo impostos por uma sociedade cada vez mais neo-liberal. Depois desta data, 25 de Abril de 1974, muitos Dias Mundiais do Teatro se festejaram aqui e pelo mundo. O que se conquistou em Portugal através do Teatro no campo do desenvolvimento cultural e social, mas também e fundamentalmente no campo artístico, deve ser imediatamente recuperado, lutando-se contra os modelos e interesses que não são os da maioria das populações: a educação estética e artística, a formação de públicos, a criação e fruição artísticas, a socialização comunitária e o associativismo. 
O Teatro e o seu Dia Mundial, para bem da nossa sanidade mental, do nosso crescimento intelectual e da nossa consciência crítica, deverá ser vivido intensamente, de novo, a partir de hoje, 27 de Março de 2014 - Dia Mundial do Teatro.

Texto escrito em desacordo com o AO